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Casa do Pontal dá novos passos para valorizar a arte popular.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
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Numa de suas muitas visitas ao Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, a antropóloga Angela Mascelani perguntou a um dos escultores se o que ele produzia era arte ou artesanato. Sem saber ao certo, o homem arriscou que um barro sem forma que é posto no forno e, pela sua invenção, transformado em algo novo, deve ser arte. — O artista é aquele que marca a diferença na sua própria trajetória, enquanto o artesão faz o convencional. Mas a própria repetição pode se tornar inaugural em certo momento, ganhar novos sentidos — afirma Angela. — A arte do Vale do Jequitinhonha permite ver o acúmulo coletivo de técnicas, de tradição herdada, mas também uma invenção.

Essa invenção, em peças escolhidas a dedo, inaugura o espaço de exibições temporárias do Museu Casa do Pontal (que fica na Estrada do Pontal 3295, no Recreio), que tem um acervo tombado de oito mil obras, 4.500 das quais estão em exposição permanente. “Afluências — A arte do Vale do Jequitinhonha” não apenas destaca os traços estéticos comuns da produção da região mineira, mas traz recortes da criação de artistas como Noemisa Batista, Ulisses Pereira Chaves, Dida, Aparecida, Rosa Gomes da Silva e Isabel Mendes da Cunha, a dona Isabel — cada um com seus temas e motivações particulares.

— Muita gente já associa o Vale do Jequitinhonha à arte popular, que hoje é olhada com mais naturalidade. Antes, se pensava que a arte tinha que ser fruto de um academicismo — diz Angela, diretora do museu. — Mas, muitas vezes, as pessoas acham que já sabem do que se trata, sem conhecerem bem a produção.

Copiadas pelo Brasil, as noivas são a marca de dona Isabel, artista de 84 anos premiada pela Unesco em 2004, e que tem discípulos como seus filhos, Amadeu, Glória e Maria Madalena, e Placidina Fernandes do Nascimento. O universo do casamento permeia ainda a criação de Noemisa, que, sem nunca ter casado, reservou às suas peças os rituais próprios da celebração. Uma parte da mostra é dedicada a Ulisses, um dos poucos homens a se dedicarem à cerâmica na região. Seres fantásticos e figuras antropomorfas e zoomorfas compõem o universo do artista.

Com uma cenografia em curvas, que remete ao percurso do Rio Jequitinhonha, a exposição tem um monitor em que se pode assistir a vídeos sobre a região e sua produção de arte, com artistas locais contando como tirar o barro, por exemplo. A mostra tem ainda uma projeção de imagens relacionadas à natureza da região, além de fotografias e obras que mostram, visualmente, como uma moringa de água se transformou numa mulher pelas mãos dos artistas. — A idéia é que o espaço registre a relação do homem com a natureza — diz Angela. — O museu tem uma arquitetura muito simples, o que a sofistica é a relação do interior com o exterior.
Contra o estereótipo de filantropia ou dívida social

O novo espaço, com amplas janelas voltadas para o verde, foi batizado de GVB Galeria de Arte, em homenagem a Guy Van de Beuque, morto em 2004. Junto com Angela, ele formalizou como espaço público o que antes era uma coleção particular de seu pai, o francês Jacques Van de Beuque. A primeira exibição das obras do colecionador foi em 1976, no Museu de Arte Moderna do Rio, depois da qual começou a ser construída a Casa do Pontal — que, nos anos 1990, ganhou o caráter que tem hoje, de um museu público, sem precisar de hora marcada para visitação.

— O Jacques tinha uma atuação quase militante em relação à arte. Era uma coleção informal, um hobby. Eu e o Guy, de perfil universitário, queríamos uma instituição de pesquisa, que explicasse que artistas são esses — diz Angela. — Lutamos contra um estereótipo de que isso é filantropia ou uma dívida social. Tudo o que é popular merece o máximo de qualidade. É claro que a formação é importante, mas também é importante que esses segmentos sem escolaridade plena e que produzem sejam reconhecidos.

E este acervo é muito bom. O museu foi beneficiado, de 1996 a 2002, por uma lei que permitia que o governo municipal do Rio pagasse sua sustentação básica, prática interrompida no governo César Maia. Sem orçamento fixo, a Casa do Pontal trabalha com patrocínios eventuais, conseguidos através de projetos, e assim foram, “como obra de igreja”, diz Angela, construídos a galeria de exposições temporárias, uma loja de utilitários e um café, além de ampliadas algumas alas da coleção permanente.

Para Angela, a nova galeria busca estimular a relação das obras com o acervo do museu, provocando o pensamento, sem sufocá-lo: — O Guy dizia que, num mundo onde tudo é visível, devíamos escolher o que ser visto. Não queremos entulhar as pessoas de informações.

A produção dos artistas do Vale do Jequitinhonha também está registrada no livro “Caminhos da arte popular: O Vale do Jequitinhonha”, lançado na própria região — na primeira homenagem aos artistas em suas próprias cidades.

Com texto de Angela e fotos de seu filho com Guy, Lucas Van de Beuque, o livro é fruto de uma pesquisa de muitos anos, cujo envolvimento familiar é indicativo de um afeto que, para ela, move o interesse pela arte popular. A valorização no mercado — mês passado uma obra de Mestre Vitalino, do acervo do escritor Jorge Amado, avaliada em R$ 1 mil, foi leiloada por R$ 22 mil — existe, mas, segundo a antropóloga, a compra desse tipo de arte ainda é fortemente motivada pelo desejo de se ter uma peça. — É uma arte movida a paixão — diz ela. — Quando você entra na vida acadêmica, o gosto tende a se naturalizar. Parece que, se você se surpreende com algo que criou, é porque não teve a capacidade de prever que aquilo poderia ocorrer. O bacana dos artistas populares é a capacidade que eles têm de se encantarem com sua própria produção. A cerâmica é esse espaço para o acaso.

Fonte: O Globo [10.12.08]

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